Litera, Atura! Vagabundas da Ficção e da Vida: Homens Podem Escrever Sobre Mulheres?
Bom dia, boa tarde, boa noite pra quem começa a ler este texto e este colunista do Acenda o Farol. Quem vos fala é Eduardo, mais um bloguista dos confins da Terra Brasilis. Mais um filósofo sem carteirinha na área. Nosso lance é a filosofia, a política, mas aqui, principalmente, os problemas da vida tais como são abordados pela literatura e ficção em geral ao longo da história do homo sapiens sapiens. Hoje estamos intrigados, querendo colocar pra fora um texto que há tempos tá guardado na cachola. Estamos aqui pensando que, em tempos demasiadamente problemáticos, a mulher ganhou sim espaço na sociedade e na vida real (embora tenha inúmeros direitos a conquistar), mas como esses direitos (ou a falta deles) foi e é refletida na história do romance e da ficção, nacional e internacional? Como os filmes, novelas e arte retratam as conquistas ou não conquistas das mulheres? E que diabos um homem está fazendo falando de algo que a elas compete falar?
Bem, os pontos a respeito do feminino na arte são muitos, então, vamos recortar um, que, pelas beiradas, entrelaça outros conforme o leitor poderá enxergar.
Quero falar aqui da visão de que o homem deve dominar a fêmea rebelde, ainda que ela supostamente se mostre insubmissa das maneiras mais sutis.
Quem nunca viu ou ouviu falar da história da mulher que foi acossada na violência ou opressão masculina, obrigada a ficar calada porque não tinha para onde ir, realmente aguentando a bronca para não passar fome? Ah, mas isso é normal hoje, Eduardo. Normal, normal, normal não acho. Acho que é norma, que é regra, imposta? Não! Até porque se é regra, de onde veio essa regra? Penso nisso tudo como mais ou menos um Fato Social, no sentido Durkheiniano, aquele sociólogo que dizia que as coisas sociais são coercitivas, exteriores e obrigatórias, ou seja, se aplicam a todos nós. Mas Durkhein meio que estava errado sabe. As coisas não se aplicam a nós como são porque são e pronto. As mulheres não são postas como submissas porque, como disse um velho babão pra mim certa vez: "é de geração em geração que muda". Não, definitivamente, não! Pra mim, os homens agem de maneira grosseira com as mulheres, não porque são obrigados por uma força externa social. Eles agem assim porque foram acostumados e se acomodaram a lidar com essa "força social", que é o machismo preguiçoso histórico. E sabe porque falo isso? Porque sou homem, porque sou parte dessa parte da humanidade que se propõe a um autopoliciamente, a um revisionamento. Primeiro porque nunca aceitei e nunca aceitarei a violência, mas, também, porque mesmo assim, um homem, por mais bondoso e pacífico que seja, deve sempre tomar cuidado com a natureza primordial a qual herda do senso comum patriarcal. Ainda que nasça sem ter cometido qualquer agressão disfarçada de generosidade à mulher. Nós fazemos isso, machos? Fazemos, sem vermos, mas fazemos! E a literatura prova isso. E é pela literatura que podemos ser algo melhor que esse ser que é bom e que às vezes precisará controlar seu monstro interior, seu Mr. Hyde de O Médico e o Monstro. Não, eu, Eduardo, não me sinto assim, controlando um monstro agressivo, um Edu que vai ser escroto a qualquer momento (do tipo, ah, me segura que vou ser escroto, me amarra na camisa de força). Não, não é isso.
Devemos, nós homens, olhar para os ancestrais, os recentes neandertais tão explícitos que ainda somos. O homem Cro-Magnon que há em nós. Esses dias eu via um episódio do seriado Família Dinossauro, sátira e comédia social que marcou a infância de muito trintão como eu na década de 1990. No seriado, os dinos são evoluídos, são os Homo Sapiens da época, enquanto os homens da caverna são os trogloditas, selvagens. Eis que uma frase surge, de quase 30 anos atrás, no seriado:
"Homem da caverna bom é homem da caverna morto". Isso te lembra algo hoje, leitor, nos tempos de Bolsonaro e "Bandido bom é bandido morto"? Ok, se a questão não é o bandido, então que seja a mulher, posta no lugar do bandido. "Lugar de mulher", "mulher no volante", "mas também, mulher em bar". Somos nós, os agressores, sim. E mesmo que saibamos tratar a mulher com toda a dignidade de um ser humano como nós, eu hoje entendo o que elas dizem com "todo homem é um potencial estuprador". Eu não sou e nunca serei um estuprador, mas não me sinto nem um pouco ofendido com essa frase, e a apoio totalmente. Sabe o que me entala a garganta, um problema que acho digno de um texto como esse? O fato de que o modelo de mulher da sociedade patriarcal, pouco mudou desde os séculos passados até hoje. Vejamos os exemplos. O que tem em comum a Lolita de Nabokov, a Capitu de Machado de Assis, a Odette de Crécy de Marcel Proust, a Madame Bovary de Flaubert, a forte Pollina de O Jogador, em Doistoévski e até mesmo a independente e líder mulher do médico no libertário e crítico Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago?
Resposta: de algum modo, todas submetidas a um modelo de mulher que deveria ser ou é, universalmente ou atemporalmente.
A Lolita de Nabokov, jovem de 12 anos por quem Humbert Humbert se apaixona, é uma ninfeta que provoca, desenvolvida corporalmente. Safada, Nasty, né? Alguma semelhança com as novinhas do Funk carioca?
A Capitu é a mulher de olhar de cigana oblíqua e dissimulada. Não preciso nem falar nada, né? É a visão do protagonista que a define, ou será que há algo em Machado escritor que não um crítico ácido e realista? Há um babaca em Machado, escondido no alter ego Bentinho?
Em Proust, Odette é a cocotte, a cocota, a galinha, a dondoca chique e sustentada pela High Society francesa, por quem Charles Swann se apaixona. Ele a sustenta, sustenta seus luxos , a viagem dela com seus amantes, sua libertinagem. Mas não porque crê num relacionamento aberto, mas porque inverte os afetos: ama para sentir ciúmes e não o contrário. Em Proust, o homem tenta sempre converter a mulher em matéria de si mesmo, salvar sua alma masculina de uma infecção contraída com o amor, mas principalmente salvar a mulher de sua doença libertina, do desejo que ela sente por outros mundos. O homem em Proust é um psicopata que tranca mulheres homossexuais ou bissexuais em casa para curá-las de sua doença suposta. Por isso, Charles não permite que Odette saia com outros porque acredita num relacionamento aberto. Ele o faz porque deseja fruir daquilo e depois impor seu feedback dominador, alfa. É o cara que vai nos prostíbulos e se esconde na varanda da amada para saber se ela está com outro. E de certo modo sente um prazer regressivo ao vê-la, porque tem mais um motivo para convertê-la em só sua, para curá-la daquele vício por outros homens.
A Madame Bovary? Nem se fala. Apesar de ser um retrato assumido do próprio Flaubert na pele de uma mulher que se casa com outro para ser a mulher tradicional que trai o marido nas costas, o que ficou de Bovary não foi tanto o psicologismo do escritor que projeta no marido de Emma Bovary o pai que o oprimia e deveria ser vingado. Em frase famosa, Flaubert disse que: Madame Bovary C'est moi (Madame Bovary sou eu), todavia, o que aprendemos com a obra, descontextualizada da análise psicanalítica que Sartre fez em seu livro O Idiota da Família? Bovary é a puta que dá pro padeiro, pro leiteiro, pro carteiro, pro entregador de pizza, pro mendigo, depois sufocada, toma veneno e morre.
Em Dostoiévski, o jogador viciado e inveterado da história, após ter recebido uma quantia razoável de dinheiro, aceita a proposta de Pollina, que lhe oferece dias de luxo e prazer, abandonando-lhe em sequência.
No livro mais conhecido de Saramago, o Ensaio Sobre a Cegueira, a mulher do médico é a única que vê, mas finge que não vê para servir de fio condutor dos outros atingidos pela cegueira branca. A quanto esforço essa mulher é submetida? O quanto ela tem que aguentar, apenas por enxergar? É obrigada a presenciar a traição do marido que acredita estar cega a esposa, além de servir como amparo de muitos. E o que ela busca em troca? A fraternidade. Será que ela consegue? A resposta, sem spoilers, digo que não é muito positiva a essa pergunta. A resposta veio na sequência, Ensaio Sobre a Lucidez, uma dura crítica aos tempos políticos dominados por abutres das urnas.
Exemplos não nos faltam, mesmo na Cultura Pop atual. Nos quadrinhos, ainda que se queira libertar a Arlequina da relação abusiva que mantêm com o Coringa, ainda resta a loucura da personagem, que "ah, tinha tudo pra ser uma psiquiatra com grande carreira, mas agora ficou louca". O fato é que os homens ainda são proustianos, ainda se derretem pelas curvas em Photoshop, as curvas excessivamente refeitas da atriz Margot Robbie na pele da personagem, bem no centro do horrível filme do Esquadrão Suicida. Os homens querem salvar a coitadinha da Arlequina, não do Coringa, mas da loucura, que talvez tenha sido a única porta de salvação e lucidez de uma mulher num mundo que é sim o verdadeiro inferno insano. E mesmo sabendo disso tudo, eu fui um daqueles que ficava vidrado na maquiagem vencedora do Oscar da atriz, digna de um papel de paredes do Windows.
Andamos a passos de tartaruga, e minha frase no início deste texto soa agora com pouca força. A mulher, infelizmente, não conquistou como deveria seu direito de escolha sem julgamento.
Não são raros os casos em que ela acredita que deseja mesmo, de coração e por livre e espontânea vontade, ser a mulher que cuida dos filhos, que se dedica apenas aos filhos e abre mão do trabalho para ficar trancada à disposição de um marido. Mas há algum problema se a mulher realmente desejar ser a dona de casa, sem compromissos que não fossem os filhos? E se ela não se sentir hábil para mais tarefas? Não, não haveria problema se essa fosse uma escolha genuína. Mas para que a escolha exclusiva pelo papel de mulher do lar seja genuína, a sociedade deve historicamente educar o homem para que aceite a liberdade integral da mulher para experimentar o tipo de vida que quer ter, sem julgamentos: que seja só, solteira, mãe solteira, não mãe e trabalhadora em dois empregos, tia em período que é, avó, empresária, engenheira, pedreira, professora, enfermeira, advogada. Caso ela percorra, ou ao menos tenha ciência dos muitos mundos existentes, aí sim poderá dizer que, deliberadamente e momentaneamente, sua ""vocação""" é ser aquela cuja vida é pacata, apenas "do lar". Mas se no dia seguinte quiser ser a caminhoneira Sula Miranda, por que não? Nenhum ser humano é um Ser preenchido e eterno, fechado como círculo. E se eu, Eduardo, vos falo enquanto homem, é porque acredito que nenhum homem, nascido com estes hormônios, gônadas e desejo sexual por mulheres, é uma ilha. E se não somos uma ilha, devemos nos tornar arquipélago, mover nosso pedaço de terra antes que um Tsunami castigue nosso egocentrismo ilusório de machos.
O homem deve devir mulher, ou seja, tornar-se mulher? Já diria isso Deleuze, um filósofo que eu acredito ser machista dos mais disfarçados, mas enfim. Ser mulher é uma tarefa atemporal dura. Se isso exige uma das mais ousadas e difíceis transformações no âmago moral e ético do masculino, é tarefa a conferir, em algumas centenas de anos. Não posso afirmar que um crossdresser ou uma drag conseguem ou conseguirão saber o que é ser uma mulher. Há questões muito mais complexas aí, que nem reposição hormonal para transgêneros e nem identidades sexuais ou afeição por genitálias seriam suficientes para resolver. Uns machos gostam de vestir-se de mulheres e ter sexo apenas com mulheres. Outros não. Ou seja: vista-se você como Laerte ou Pabllo Vitar como Anitta, o fato é que prefiro nunca arriscar-me a definir o que é uma mulher? Na ficção científica de Philip K. Dick ou Asimov, a questão era saber o que é um homem, no sentido humano mesmo. Eu, eu que já fui e muito contaminado por imagens das Marilyn Monroes às Madonas, me sinto na obrigação de escrever este texto. Eu quero mesmo é voltar à minha sincera não falsa modéstia, tentando contemplar na medida da minha ignorância ou sapiência, o que de belo há naquilo que resta dos terráqueos.
Eduardo Arantes.



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